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Channel: Ficção – Miniature Disasters
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Texto: Nosso Idioma particular

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Olha só quem apareceu após uma ausência de vários meseees!
O segundo semestre de 2016 foi uma verdadeira loucura na minha vida. Entre terminar o TCC e fazer outras diversas atividades acadêmicas, acabei abandonando um pouco o mundo blogueiro. Além de ter deixado meu blog na mão, parei de responder comentários, tanto por aqui quanto nos cantinhos mais queridos da internet. Não tive sequer tempo pra ler posts novos! Depois fui assomada por uma daquelas famosas crises de “não gosto de nenhum dos textos que escrevo”, e só agora tenho retomado um pouco as rédeas da minha criatividade (fica bonito quando dito assim, não?!). De qualquer forma, pretendo ir voltando a frequentar a blogosfera aos pouquinhos, tenham paciência comigo…
Fiquem com esse pequeno conto, o primeiro texto fictício que eu escrevi após uma abstinência de mais de um ano

– Você acha que eu sou ridícula, né?!
Lembro-me até hoje do sorriso que minha irmã deu quando terminei de contar para ela o que sentia. Meu coração estava tão acelerado que não teria sido grande surpresa se ele tivesse saltado do meu peito como naquelas cenas de desenho animado. Apesar dos meus catorze anos de idade, aquela era uma das primeiras vezes em que conversávamos de fato, sem o intermédio de nosso pai ou de qualquer plataforma escrita.
Apesar disso, tínhamos uma conexão muito grande. Uma das minhas primeiras memórias da infância era dela, dez anos mais velha do que eu, sentada no sofá, concentrada naquele objeto misterioso que tinha nas mãos. Se, no meu olhar de criança, meus pais eram os grandes exemplos de gente-grande bem resolvida, ela tinha um ar enigmático e silencioso que muito me intrigava e, ao mesmo tempo, intimidava. Eu queria ser como ela, embora não soubesse muito bem por quê.
Certo dia, num rompante de coragem do auge dos meus quatro anos, fui até o quarto dela e surrupiei da estante uma daquelas coisas que ela sempre carregava pra todos os cantos. Sentei-me no sofá e tentei imitar todos os gestos que ela tinha quando fazia aquele ritual. Tinha escolhido a capa mais colorida da estante dela: era uma edição de 1984, de George Orwell. Enquanto tentava entender qual era o encanto daquele monte de formiguinhas imóveis espalhadas pelo papel, percebi que ela me olhava com muita curiosidade e um sorriso enorme no rosto. Eu, que estava com medo de tê-la irritado e de levar uma bronca, comecei a ficar mais calma, mas percebi que ainda não conseguia brincar com aquilo. Ela levantou-se, foi até o quarto e trouxe de volta uma obra muito mais adequada para a minha idade, feita quase exclusivamente de figuras muito grandes e cheias de cores.
– Aqui – ela disse, com um tom muito suave na voz. – Acho que vai gostar mais desse.
Foi ali que surgiu meu interesse pela literatura. Naquela breve conversa que tivemos, muito mais de gestos e olhares do que de palavras. Naquele carinho sutil. Naquela tentativa de ser como ela era.
A partir de então, comecei a procurar cada vez mais avidamente por livros. Ela era a maior incentivadora desse meu novo hábito, sempre entregando exemplares novos em minhas pequenas mãozinhas. As palavras ditas, no entanto, continuavam sendo quase nulas. Nosso modo de demonstrar amor e cumplicidade uma pela outra era diferente do da maioria das pessoas, e meus pais sempre encaravam aquela situação toda com uma estranheza razoável.
Mas os anos foram vindo e trouxeram com eles uma diminuição no meu interesse. Eu já não fazia mais tanta questão de seguir os passos daquela pessoa tão quieta com quem eu convivia, e outros estímulos foram roubando a atenção que eu dava para os livros. Eu percebia um ar de tristeza nos olhares dela, como se estivesse perdendo o laço que criara comigo.
Foi repentinamente que me dei conta das mudanças que estava vivendo. Assim, de súbito, senti que minha infância ia desaparecendo ao longe e que ia cada vez mais tornando-me uma adulta, perdendo, junto com a inocência, alguns dos meus costumes de criança. O sentimento de confusão foi grande e curioso: estava pronta para tudo aquilo? Eu não sabia bem quem eu era naquele momento, e muito menos quem eu queria ser nos anos vindouros.
Num dia cheio de desassossegos, cheguei em casa e a vi sentada no sofá, em sua posição costumeira, aparentemente inabalável. A conexão que tinha com ela voltou de forma arrebatadora, e quando dei por mim, estava sentada no sofá ao lado dela, compelida a contar tudo o que sentia. Ela voltara a ser aquela figura enigmática que eu admirava quando mais nova. Mas e se… e se o segredo da nossa relação fosse a ausência de oralidade? E se nossa linguagem fosse a dos olhares, dos gestos e dos livros? E se eu estragasse tudo a partir do momento em que eu abrisse a boca?
Olhei para ela e notei que ela percebera minha inquietação. Tinha fechado o livro e olhava para mim de forma interrogativa. Eu não podia mais guardar aquilo tudo ali dentro e fingir que vivia um dia como qualquer outro. Respirei bem fundo e contei.
– Não, eu não te acho ridícula – foi a resposta que ouvi depois dos longos e angustiantes segundos de silêncio que se seguiram à minha pergunta. O sorriso no rosto dela era carinhoso, mas eu ainda estava um pouco em dúvida quanto ao que havíamos vivido e minha percepção estava prejudicada. – Só acho que você é nova demais para uma crise de adultismo. Mas quem entende como funciona a adolescência?
Ela levantou-se e seguiu para o quarto. Poucos minutos depois, voltou com Clarissa nas mãos. Estendeu o livro para mim e disse, no mesmo tom suave que usara dez anos antes:
– Aqui. Acho que vai gostar. Depois conversamos sobre ele.
A verdade é que esse depois nunca veio. Quando terminei o livro, olhei para ela com um sorriso de agradecimento e ela compreendeu.
Depois disso, decidi mudar a estratégia. Passei a também recomendar alguns livros a ela, contando, por meio das narrativas, o que estava sentindo naquele momento de minha vida. Ela logo percebeu e, sentindo a abertura, resolveu fazer o mesmo. Até hoje é assim. Quando notamos uma sucessão de livros tristes nas recomendações uma da outra, sentamos para conversar mais longamente. Caso contrário, seguimos nos comunicando por meio desse idioma tão nosso.


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